«Turquia» - Engraxador

>> terça-feira, junho 20, 2006



Bob Marley - No Woman No Cry


Era uma vez um par de sapatos. Um dia, um deles lembrou-se de ir ao engraxador...e foi.
O outro nem por isso... não lhe apeteceu. Fazia-lhe impressão as escovas e os panos e o pior de tudo aquela cena da graxa. Enojava-o. Não....o pior de tudo era mesmo ter de acompanhar o seu par e apanhar com as habituais teimosas tentativas de o engraxar. Não estava mesmo para lá virado.
Mas lá foi para fazer a vontade ao sapato direito, com quem vivia desde que nascera.

O sapato direito que queria ser engraxado lá se pousou com ansiedade no pedestal metálico feito mais ou menos á sua medida entre as pernas daquele homem, engraxador de profissão. Poeta popular por vocação.

O sapato esquerdo aborrecido, tentava disfarçar a sua má-disposição e passar despercebido do engraxador de profissão, mas poeta de vocação.

O poeta engraxador abriu a sua caixinha de pomadas e cremes e escovas e panos de passar o lustre, o que fez abrir um sorriso largo no sapato direito e um ar de agonia no sapato esquerdo.

O poeta engraxador sorriu para ele, o que o assustou, pois viu ali um sorriso sinistro e antecipatório. Já tinha visto aquele sorriso anteriormente. Começou a bater o pé nervosamente.

O outro, o direito, pelo contrário sentia-se cada vez mais confortável, a passagem da escova aquecia-o ligeiramente e fazia pequenas cócegas no pé que o calçava que se aconchegava a ele. “Hmmm....porreira esta sensação. O esquerdo não sabe o que perde..”

Eram pretos os sapatos, ou seja, o direito era preto, o esquerdo era de um cinzento empoeirado, ou melhor de um preto sujo.

O engraxador amante de poesia nas horas vagas, mandou uma ao sapato direito enquanto lhe esfregava a graxa pelo peito (“Hmmm...ai o espalhar deste creme pelo meu corpo...Hmmm” gemia de prazer o sapato direito)

“Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandescente.”

O esquerdo pensava “piroso!!!”, enquanto rasgava o chão nervosamente.

O engraxador lá seguia:

“Inútil seguir vizinhos,
que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.”

E sacou do pano mágico de passar o lustre. “oh! ... libidinoso climax. Como eu gosto deste pano mágico”, pensava com os seus atacadores o sapato direito, enquanto o engraxador, poeta e amante de poetas continuava sua labuta:

“Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.”

O esquerdo escondia-se, atrás da perna direita, tentando fugir ao terrível a amaldiçoado destino que certamente o esperava.
O sapato direito lustrado e ainda em extâse desceu a custo para o chão, pois ainda tremia de emoção, obrigando o sapato esquerdo a mostrar-se. Pediram-lhe que subisse.

“NÃO. Desta vez NÃO. NÃO subirei. Não serei engraxado. Não serei sujeito a tal humilhação em público”.... e fujiu.... sózinho.

O direito ainda chamou por ele... o esquerdo já ia longe...cada vez mais empoeirado e cinzento... livre... Já não ouvia nada nem ninguém.

Separaram-se, pela primeira vez desde a nascença e desta vez para sempre. O sapato direito lá ficou, bonito e lustroso, sorridente e vaidoso...sem o chato do esquerdo.

.......

Dizem que passados uns anos se reencontraram por acaso, numa lixeira municipal. O direito ainda limpo e preto, mas sem alma, abandonado precocemente pelo seu pé por se ter transformado num inútil sem o esquerdo. O esquerdo pelo contrário, cada vez mais sujo e com algums buracos na sola, tinha entrançado os seus atacadores e era um Rastafari. Curtia reggae.
Era feliz, tinha encontrado o amor da sua vida: uma chinela amarela que lhe fez par durante esses anos nos pés de um cidadão sem casa pelas ruas de Lisboa.....

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